Carta na mesa – Marchar só pela maconha é um “desserviço”?
“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis” Planet Hemp
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis” Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é
composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas,
de seus efeitos político-sociais e de sua proibição, e também de suas
experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com
elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não
esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo
desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e
ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que
quiser.
Na edição dessa semana, nosso jornalista
e historiador Júlio, do DAR, comenta e rebate uma crítica que a Marcha
da Maconha recebeu recentemente em um debate: a de representar um
“desserviço” para o combate à guerra às drogas.
Marchar só pela maconha é um “desserviço”?
Por Júlio Delmanto
Tem uma tirinha do Calvin em que ele é empurrado, ou xingado, não lembro, no corredor da escola pelo valentão Moe – aquele que “tem seis anos e já faz a barba”
– e que termina com o melhor amigo do Haroldo reclamando algo como: “e o
pior é que sei que vou pensar numa ótima resposta pra isso hoje à
noite”. Tentei achar o quadrinho mas não encontrei no Google – na busca,
amigos mais intelectualmente torneados me apontaram que pra essa
sensação tem até expressão em francês e pá: L’esprit de l’escalier, o espírito da escada.
Participar de eventos tipo “mesas de debate” toda vez me dá um lance
desses: sempre que solto o microfone já começo a perceber o que tinha
planejado falar, ou poderia falar, e esqueci. Na última quarta, 20 de
agosto, estive em um debate sobre a guerra às drogas organizado pelo
Centro Acadêmico de Direito da PUC-SP e aconteceu de novo – o que me
motivou a escrever esse texto.
Mais especificamente, o que me motivou foram as intervenções do
advogado Leonardo Massud, que é professor da PUC e membro do IBCCRIM –
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, organização que tem
entendimentos antiproibicionistas e de e crítica à justiça penal, ao
encarceramento em massa, à criminalização da pobreza, enfim, essas
coisas que a verdadeira “gente de bem” não pode aceitar. Apesar de estar
alinhado, em linhas gerais, às proposições do DAR e do movimento
antiproibicionista, o professor aproveitou sua fala para criticar a
Marcha da Maconha por um aspecto que volta e meia vem à debate,
sobretudo em meios mais de esquerda, e que pode ser mais bem
problematizado do que foi no momento, pela falta de tempo e pelo
glorioso espírito da escada que me acometeu (talvez o cheirinho de
liberdade que vêm das escadas da PUC tenha algo a ver com isso também,
quem não estudou lá pode ficar meio desorientado de estar num lugar em
que sempre é 16h20…).
Em sua fala, o professor Massud defendeu que a Marcha da Maconha
representa um “desserviço” para a luta contra a guerra às drogas e a
favor dos direitos humanos por conta da (suposta) ênfase exclusiva na
legalização da maconha. Disse mais: “com essa estratégia a gente não vai
chegar a grande coisa”. Ele ainda comparou a legalização da maconha com
a descriminalização do porte para consumo pessoal – que pode ocorrer em
breve via STF: ambos representariam um avanço imediato mas um
retrocesso a longo prazo, já que segundo ele a descriminalização do
porte ou da legalização da maconha representariam o fim da discussão
sobre a legalização de todas as drogas, propiciando que a guerra
continue.
Respeitando o professor, sua trajetória e disposição pro debate fraterno, e longe de querer compará-lo com o Moe e seu bullying
permanente contra o Calvin, gostaria de divergir aqui de alguns pontos,
e pensar sobre outros. Em primeiro lugar, destaco que o Coletivo DAR,
do qual faço parte, nasceu exatamente dessa opinião de que “apenas” a
legalização da maconha era insuficiente para acabar com a guerra às
drogas e seus efeitos perversos, sobretudo em relação aos pobres, pretos
e periféricos. Criado por ativistas que já participavam da Marcha da
Maconha, o DAR queria ir além da ênfase exclusiva nos direitos dos
usuários e na defesa da legalização da maconha, criticando também a
descriminalização como uma saída hipócrita e pouco efetiva (como disse a
inspiradora do nosso nome, a juíza Maria Lúcia Karam: quem defende apenas a descriminalização precisa admitir que é proibocionista).
No entanto, esse entendimento de que o antiproibicionismo precisa
necessariamente tratar de todas as drogas, defendendo o fim da proibição
não só para o consumo mas também para produção e comércio, não nos
levou a abrir mão de atuar no interior da Marcha da Maconha. Claro que o
fazemos sempre tentando nos pautar por essa visão mais ampla,
criticando a guerra às drogas como um todo, mas também levando sempre em
conta que se trata de um movimento bastante amplo e diverso, uma marcha
onde cabem muitas marchas, como costumamos dizer a partir da inspiração
zapatista. Se a Marcha da Maconha de São Paulo (sobre a qual posso
dizer algo, já que das outras quem sabe são seus organizadores – a
Marcha da Maconha funciona de forma horizontal e em rede, sem instâncias
nacionais) a cada ano tem enfatizado mais a crítica à guerra de forma
geral, e se articulado com outros movimentos e bandeiras, por outro lado
não há como esquecer que nosso consenso principal, e unificador, é em
torno da legalização da maconha.
Além disso, há em torno da cultura canábica, e da figura do
maconheiro e da maconheira uma questão de identidade, construída a
partir da opressão e da resistência a ela. Se tomar uma cerveja ou um
remédio raramente gera um tipo de sentimento assim, fumar um baseado
torna-se mais do que uma conduta banal pelo fato disso ser proibido e
gerar preconceito. A contestação, a rebeldia e o gosto pelo proibido
juntam-se com a subcultura própria do cultivo e do consumo,
turbinadíssimas pela cultura de Internet e redes sociais de forma mais
ampla. Tanto pelo maior índice de consumo em relação a outras drogas,
quanto talvez pelo menor e decrescente estigma em relação à erva kaya,
essa identidade rebelde em torno da cultura canábica não se repete em
relação à cocaína, psicodélicos ou ao crack, o que se reflete
inevitavelmente na Marcha, em forma e conteúdo.
Uma opção bacana para o futuro talvez pudesse ser o que se pode
observar em relação à Parada Gay, que depois passou a se chamar LGBT. Se
anteriormente o que unificava aquelas pessoas num protesto político era
o orgulho gay, com o tempo percebeu-se que essa identidade não dava
conta da diversidade ali presente, pois há pessoas que querem lutar não
apenas em nome dos direitos dos gays, querem utilizar termos que lhes
dizem respeito mais especificamente: lésbicas, bissexuais, travestis,
transexuais, etc. Quem sabe um dia consigamos unir os descontentes com a
guerra às drogas numa Marcha da Maconha, do Pó, da Pedra, do Ácido e do
Loló, uma marcha do orgulho MMPPAL, sei lá. No cenário atual, não há
clareza e consenso no interior da Marcha se isso representaria
fortalecimento ou enfraquecimento do movimento, e como caminhamos por
consenso ainda não foi possível dar esse passo.
Mas sim, por mais que a maconha seja a mais consumida das drogas
ilícitas, e portanto uma fonte importante de renda para o mercado
ilícito e seus chupins (policiais, juízes, deputados, etc.), sua
legalização não representa o fim da guerra às drogas, da violência
estatal, da militarização da periferia. Há uma autora espanhola, Belén
Luca de Tena, que inclusive qualifica o proibicionismo global como “a guerra da cocaína”, e isso não pode ser ignorado – segundo estimativa de uma consultoria gringa,
só de farinha o tráfico movimenta 9 BILHÕES por ano no Brasil. Na
verdade sequer a guerra às drogas representa o fim do sofrimento dos de
baixo em um país marcado por mais 500 anos de autoritarismo, escravidão,
racismo, machismo, homofobia e violência. Por outro lado, não é por
isso, por “não resolver o problema”, que a legalização do cigarrinho de
artista, do bruxinho, deixa de ser um avanço.
Legalizar a maconha e recrudescer a guerra aos pobres com a
justificativa do combate ao crack e à cocaína não é um cenário
improvável. Evidente que os que verdadeiramente se importam com a luta
por justiça, autonomia e igualdade social, racial e de gênero devem
prestar atenção aos interesses envolvidos, e muitas vezes escondidos, em
proposições que parecem vir do nosso lado mas podem atrasá-lo, podem
significar a apropriação parcial de nossas demandas e discursos para
fins pouco honrados. Demorou. Mesmo assim, fica difícil dizer que a
Marcha seja um “desserviço”
Em primeiro lugar pensemos que um a cada cinco presos no Brasil está no veneno por crimes relativos a drogas.
Não conheço dados confiáveis sobre a substância usada como
justificativa pela prisão de cada um, mas certamente o percentual de
envolvidos apenas com supostos uso e comércio de canábis é grande.
Aliviar a situação dessas pessoas e de suas famílias já tornaria a
Marcha da Maconha um servição: um adianto. Cara, a liberdade não tem preço.
Fora isso, depois de tudo que passamos desde que marchamos pela
primeira vez com o nome Marcha da Maconha em 2007, apenas no Rio de
Janeiro, e em 2008 em oito cidades incluída aí a nossa São Paulo, com
míseros 50 gatos pingados no Parque do Ibirapuera, fica difícil defender
que nosso movimento tenha irrelevância política no cenário político
brasileiro. Para o jornalista Bruno Paes Manso,
por exemplo, a Marcha “já conquistou espaço no calendário dos eventos
políticos e culturais de São Paulo mais importantes feitos pela nova
geração de jovens urbanos que continuam a surpreender e a estimular a
discussão na cidade”. Ele lembra também do papel cumprido pela nossa
mobilização dentro do processo mais amplo de mobilização autônoma e desde abajo que gerou as chamadas “jornadas de junho” em 2013.
Produto e um pouquinho produtora do espírito de junho, um dos
momentos políticos mais pesados da história recente do Brasil, a Marcha
da Maconha trouxe e ainda traz uma série de contribuições e debates para
os interessados em mudar o mundo – comentamos algumas delas nesse texto do DAR aqui.
Além disso, serviu e serve para fomentar o antiproibicionismo no
interior dos movimentos sociais, da juventude, da mídia e da sociedade
em geral- se a legitimidade deste ponto de vista tem crescido
notadamente nos últimos anos eu suponho que foi um pouco menos por conta
de falas em mesas de debate sobre legalizar todas as drogas e um pouco
mais pela Marcha nas ruas, né não? E essa legitimidade repercute na luta
contra a guerra às drogas como um todo, não só na discussão sobre a
Maria.
Há ainda, pelo menos, dois aspectos muito importantes no avanço e na
consolidação da Marcha: a desobediência civil e a explicitação da
finitude possível da proibição das substâncias tornadas ilícitas. Cada
vez mais próximas de um grande “maconhaço”, as Marchas da Maconha
representam um espetáculo ordenado, criativo e bem humorado de
desobediência civil – conquistado com muita luta e contra muitos
obstáculos – que coloca em primeiro plano tanto a livre ocupação das
ruas quanto possibilidades radicais de fazê-lo.
Sempre dizemos que o consumo de alteradores de consciência é milenar,
e que o controle social proibicionista é apenas uma das formas
possíveis de controle, não sendo só a mais nefasta e menos efetiva como
também muito recente historicamente, com cerca de cem anos. Se mudamos o
status legal de uma substância demonizada por tanto tempo, isso coloca
na mesa a discussão de que a proibição é historicamente determinada,
localizada, e pode ser revertida. A legalização da maconha pode ser
vista como a porta de entrada para o fim da guerra contra as outras
drogas, ainda mais com os indicadores bem sucedidos que certamente
viriam com o tempo – e que virão nos EUA, no Uruguai e nos próximos que
legalizarem.
Sério que tem gente que acha que “assim não vamos chegar a grandes coisas”? Tenho impressão de que já chegamos…
Texto retirado do site http://coletivodar.org/2014/08/cartas-na-mesa-marchar-so-pela-maconha-e-um-desservico/
Mais ótimos textos em seu site, sobre descriminalização das drogas, contra essa guerra das drogas que só mata pobres e principalmente jovens negros.
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